1. O Estado de Santa Catarina
vive em estado de choque desde o último dia 30 de janeiro de 2013 com mais uma
série de atentados praticados pelo crime organizado. Até o dia 15 de fevereiro
as fontes oficiais já contabilizaram 100 ataques a ônibus e unidades de
segurança, distribuídos em 30 municípios, com destaque para as cidades de
Joinville e Florianópolis, que registraram o maior número de ocorrências (15 e
14 respectivamente), mas também para a difusão dos ataques pelas cidades do interior
do estado. A primeira reação das autoridades da segurança pública foi
apresentar os novos atentados como fatos isolados, sem relação com os 69
ataques registrados no mês de novembro de 2012, que tinham o mesmo perfil e
cuja organização desde o interior das unidades prisionais foi atribuída à
facção criminosa Primeiro Grupo Catarinense (PGC). Contudo, a evolução dos
acontecimentos mostrou que não estamos diante de uma questão isolada de
segurança pública, mas de uma crise que tem novamente seu estopim no sistema
prisional. E mais: que a presente crise está sim conectada com os fatos do
último mês de novembro, sendo a continuidade de uma situação que se arrasta no
interior do sistema prisional catarinense desde o final de 2012.
2. Trata-se de uma situação que
vem sendo acompanhada pela Frente Antiprisional das Brigadas Populares de Santa
Catarina, a partir da atuação no Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em
Privação de Liberdade, cujo foco tem sido a organização dos familiares de
presos da Penitenciária de São Pedro de Alcântara em torno de suas
reivindicações coletivas. Foi na reunião mensal do grupo do dia 31 de outubro
de 2012 que tivemos conhecimento do tensionamento interno existente entre os
presos e a administração da penitenciária, quando, ao lado do relato das
inúmeras privações e restrições por que passam cotidianamente os presos e seus
familiares, diversas esposas e mães manifestaram o temor de represálias aos
presos com a volta ao exercício do Diretor Carlos Alves apenas duas semanas
após o assassinato de sua esposa. A morte da agente prisional Daisy Alves foi
atribuída pelas autoridades policiais às lideranças da facção criminosa PGC,
presos em São Pedro de Alcântara à época. O endurecimento do tratamento, com
incursões violentas nas celas, logo nos primeiros dias da volta do Diretor foi
seguido de um incidente com um preso que resistiu e tentou enfrentar os
agentes, que, interpretado como início de motim, serviu de justificação para a
suspensão das visitas de familiares e advogados no dia 07 de novembro de 2012.
Impossibilitada toda comunicação com o mundo externo num contexto de tensão
como o que se verificava, os familiares de presos foram tomados pelo pânico e
pelo temor pela integridade física dos presos. A saída encontrada pelo Grupo de
Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade foi a mobilização
política e pacífica, com uma vigília de uma semana em São Pedro de Alcântara e
atos de rua em frente ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao Fórum de São
José e à Secretaria de Justiça e Cidadania, colocando na cena pública a
denúncia de tortura e solicitando às autoridades a realização imediata das
inspeções que posteriormente deram origem ao inquérito policial ainda em curso
com 69 laudos de violência física e ao relatório da Ouvidora Nacional do
Sistema Penitenciário. Quando as mobilizações pacíficas começaram ter seus
primeiros resultados, com a ampla inspeção realizada nos dias 13 e 14 de
novembro pelo Juiz da Vara de Execuções Penais e pelos representantes do
Ministério Público Estadual, teve início a onda de ataques na noite do dia 13
de novembro de 2012, num misto de protesto e demonstração de força por parte da
facção criminosa. A partir desse momento, o cenário das ruas tornou-se perigoso
demais para a continuidade das mobilizações e para a própria segurança física
de seus integrantes, o que forçou a mudança de cenário da luta para o terreno
institucional.
3. A luta para dar conseqüência às
conquistas da mobilização avançava, a partir de então, no lento ritmo das autoridades
catarinenses. Com a presença de atores como a Ouvidoria Nacional de Direitos
Humanos e a Ouvidoria Nacional do Sistema Penitenciário, foram arrancados
alguns compromissos importantes da Secretaria de Justiça e Cidadania, como a
criação de um Observatório Catarinense do Sistema Prisional com participação
paritária de Estado e Sociedade Civil, a implementação de um protocolo para o controle
do uso de armas não letais pelos agentes prisionais, uma política de
comunicação das transferências de presos com as famílias, etc. Em termos
práticos, nenhum desses compromissos foi cumprido até o presente momento. O
calendário avançava rapidamente, entrando na época das festas de final de ano e
das férias de verão, com todas as dificuldades de mobilização e de recurso às
autoridades públicas próprias desse período do ano. A vida na prisão,
entretanto, não tem férias. Apesar do término das torturas físicas, não
ocorreram no interior da Penitenciária de São Pedro de Alcântara mudanças
concretas no sentido da melhoria das condições dos encarcerados. Com exceção de
alguma melhora no tratamento dos familiares que visitam os presos e da alocação
de uma médica que trabalha na unidade durante as tardes, o que ocorreu foi
manutenção de uma série de restrições que já vinham desde o mês de novembro,
como a retirada das televisões e dos rádios e a saída para o banho de sol no
pátio negada por um longo período e depois autorizada uma vez por semana para
cada ala. Problemas como falta de água potável, a falta de kits de higiene, falta
de assessoria jurídica, falta de atendimento médico continuaram sem resposta. A
expectativa de mudanças rápidas gerada pelas visitas realizadas pelas
autoridades no final de 2012 acabou alimentando novamente a tensão interna na
prisão. A demora na conclusão dos inquéritos policiais das denúncias de
tortura, o fato de os agentes envolvidos nos fatos de novembro seguirem
trabalhando normalmente na Penitenciária de São Pedro de Alcântara, a notícia
da possível promoção do ex-diretor Carlos Alves ao cargo de chefe do grupo
intervenções táticas no sistema prisional e a ação do grupo de intervenção
tática torturando presos no Presídio de Joinville, denunciada com a publicação
de um vídeo que chocou a opinião pública nacional, acirraram ainda mais a
situação no sistema prisional catarinense. O resultado está nas capas do
jornais catarinenses dos últimos 15 dias: mais uma vez o tensionamento interno
existente no sistema prisional transbordou sob a forma de ataques violentos aos
ônibus, às unidades de segurança e às casas de agentes da segurança pública e
do sistema prisional.
4. Qual a origem desse
tensionamento? Se o sintoma está na segurança pública e o estopim no sistema prisional,
a busca das raízes do problema exige um olhar que consiga enxergar para além da
conjuntura das últimas semanas ou dos últimos meses. É preciso compreender a
política penitenciária do Estado de Santa Catarina no marco das tendências
estruturais do sistema penal do capitalismo dependente tal como se constituiu
historicamente no Brasil. A desigualdade brutal de uma sociedade marcada pela
superexploração do trabalho e pela marginalização social massiva é refletida no
funcionamento estruturalmente seletivo do sistema penal: desde o conteúdo das leis
penais, passando pela atuação dos órgãos policiais, do sistema de justiça e
culminando no sistema prisional, o alvo privilegiado é a camada marginalizada
da classe trabalhadora. Um breve olhar sobre os dados atualizados do sistema
penitenciário brasileiro basta para verificar o verdadeiro genocídio que atinge
a população pobre, negra, jovem e de baixa escolaridade. Encarceramento que no
primeiro semestre de 2012 alcançou a marca de 549.577 presos no país, um
crescimento de 511% entre os anos de 1992 e 2012 e de mais de 6% apenas nos
últimos seis meses. Precisamente o período histórico de aprofundamento do
capitalismo dependente no Brasil, com a reestruturação produtiva capitalista
que expulsou ainda mais trabalhadores do mundo produtivo e com a transformação
regressiva do Estado brasileiro sob o influxo das políticas neoliberais, que desmantelaram
as poucas estruturas de um Estado social que sequer chegou a existir plenamente
em nosso país. A alternativa do Estado brasileiro para o controle da crescente
massa de desempregados, subempregados e marginalizados tem sido o
a expansão do sistema penal, um problema que cobre todo o período
histórico das últimas duas décadas e a realidade de Santa Catarina não é uma
exceção em relação ao resto do país.
3. A perversidade do sistema
penal vai além de sua seletividade classista e racista, pois o sistema cumpre
funções ativas que não apenas reproduzem, mas aprofundam a desigualdade da
sociedade capitalista. Para além da leitura do sistema penal a partir de suas
funções declaradas de retribuição, intimidação ou ressocialização, o fato é que
muito mais que combater a criminalidade, o que o sistema penal faz efetivamente
é criá-la e reproduzi-la de modo ampliado, recrutando mais e mais
marginalizados criminais entre a massa de marginalizados sociais que sobrevive
nas periferias das grandes cidades brasileiras. O estigma carregado pelos marginalizados criminais
os sujeita ainda mais à superexploração no mercado de trabalho: após a prisão, quando
conseguem emprego, é sempre o de mais baixa remuneração (servente de pedreiro,
limpeza em empresas de serviços terceirizados etc.); no próprio interior das
prisões, com os famigerados programas de trabalho, as mesmas empresas que negam
trabalho ao ex-condenado pagam salário mínimo ao preso por funções que no mundo
livre são remuneradas por muito mais. É dessa forma que o sistema penal vai
criando a matéria humana de que se serve o crime organizado para levar a cabo
os seus negócios, intimamente relacionados com interesses econômicos e
políticos da própria ordem capitalista (tráfico de drogas e de armas, lavagem
de dinheiro, grupos de extermínio, sequestros, atentados etc.). Por trás da
ilusão de segurança e de combate ao crime, a punição as ilegalidades visíveis
praticadas pelos pobres encobre a vasta ilegalidade invisível das grandes
organizações criminosas ligadas à acumulação de capital e à própria gestão do
Estado capitalista. A perversidade grotesca é que a absoluta maioria dos
trabalhadores empregados na segurança pública e no sistema prisional é também
recrutada nas classes populares: pobres matando pobres, enquanto a classe
dominante segue cuidando tranquilamente de seus negócios legais e ilegais!
5. Diante dessas tendências estruturais
do sistema penal capitalista, qual o papel da política penitenciária aplicada pelas autoridades catarinenses? Qual a
responsabilidade do Governo Estadual, da Secretaria de Justiça e Cidadania e do
Departamento de Administração Prisional nesta crise? A política penitenciária é uma das
dimensões da política geral do Governo Estadual. E a política é sempre uma
questão de escolha entre alternativas colocadas pelo próprio desenvolvimento
histórico anterior. Pode um governo de perfil regressivo em relação a todos os
direitos e conquistas civilizatórias da classe trabalhadora como o governo do
senhor Raimundo Colombo manter uma política penitenciária progressista, fundada
no respeito à dignidade humana e na reintegração entre preso e sociedade? Qual é, em suma, o perfil da política
penitenciária levada a cabo pelo Governo de Santa Catarina?
Florianópolis, 15 de fevereiro de 2013
Frente Antiprisional das Brigadas Populares de Santa Catarina
Florianópolis, 15 de fevereiro de 2013
Frente Antiprisional das Brigadas Populares de Santa Catarina